Era muito comum que linhas ficassem penduradas na minha casa. No telhado, nas árvores, enrocada na antena ou só caídas por ali esperando ser enroladas.
Quando eu via que era vermelha, ficava atento. Enrolava com cuidado com a preocupação de acabar me cortando. Nunca fui muito de pipa, sempre achei meio idiota ficar em pé no sol, olhando pro céu.
Brinquei algumas vezes, mas não por vontade própria. Futebol e pipa não são exatamente possibilidades na infância de um menino, normalmente, pelo contrário, são uma obrigação. Você pode optar por não brincar e se isolar da diversão e dos amigos, mas alguém vai querer isso quando criança?
A linha chilena e o cerol são proibidos. Cresci com as histórias de motociclistas que perderam a vida por ter uma dessas linhas enroscadas em seus pescoços. Quando era criança, tinha na minha cabeça que deveria ser horrível a cena, visto que a linha cortaria a cabeça fora, deceparia. Gráfico demais. A realidade não é assim, mas mata do mesmo jeito.
Sempre me senti curioso com o nome “chilena”, mas nunca encontrei a origem. Na infância, não remetia de forma alguma ao Chile, talvez eu nem soubesse da existência de uma nacionalidade com esse nome. De qualquer forma, era peculiar ouvir falar de “linha chilena”, soava exótico e proibido, o que definitivamente atiçava a curiosidade.
Eu nunca fui de pipa, mas, vendo aquela linha vermelha pendurada em minha garagem, pensei em todos aqueles que foram e que são de pipa.
Assustei-me outro dia. Num campo algumas rua pra baixo havia um amontoado de gente. Várias equipes uniformizadas, com carros personalizados e tendas armadas para fornecer água e alimentação para os competidores. Com todos olhando para o céu, esse foi meu movimento lógico e lá estavam centenas de pipas.
Posso ser linchado por isso, mas se eu já achava sem sentido empinar pipa quando criança, então, achava bem patético adultos “marmanjos com barba na cara” correndo atrás das pipas que iam caindo e disputando o espaço do céu com crianças que compravam suas pipas depois de alguns dias juntando dinheiro.
Talvez eu nunca entenda plenamente o adulto dessa descrição, mas vendo a linha vermelha que eu teria de enrolar, consegui, por alguns segundos, sentir o que a criança dentro desse adulto poderia sentir.
Quem nunca sonhou que voava? Quem nunca desejou poder voar como os pássaros? Aqueles que tem medo diriam que não, mas sinto que assim diriam por saber que essa realidade jamais os pertenceria. O medo tem muita relação com o desconhecido. Voar de avião ainda é muito distante pra muita gente.
Empinar pipa é olhar pra cima. É especialmente importante para quem tá acostumado a estar embaixo e ser diminuído. Na infância, na minha posição de sempre estar mais ou menos em cima - coincidentemente moro em um bairro alto, diferente da comunidade ao lado que de vez em quando ainda alaga - jamais me atentaria a essa simbologia.
Pode ser sim sobre a dignidade simbológica que atrelamos ao “cima”, mas pode ser também sobre liberdade, sobre poder voar sem limites - pelo menos até onde tiver linha -, é também sobre querer sentir de alguma forma a libertação desse mundo térreo e angustiante.
No céu tem o azul e tem as nuvens. Não têm fronteiras ou muros. Não existem cômodos apertados que precisam ser divididos com mais gente ou vagões de trem lotados.
No final, é meio triste voltar para a linha cortante. Eu posso entender a diversão de voar, mas me destrói perceber a diversão na competição e no desejo de fazer com que o outro não mais possa. Vai ver é assim mesmo. Vai ver a gente nasceu pra competir e se aniquilar.
Com os cortantes, cola de sapateiro com vidro moído ou pó de quartzo, óxido de alumínio e outros na linha de algodão, rapidamente uma brincadeira vira um crime. A diversão se torna uma crua e cruel realidade. Onde morre a inocência? Morreria também por um corte no pescoço?
Penso ser um trabalho complexo demais distinguir o correto do proibido e a miséria da realidade das infinitas possibilidades do sonho. Ninguém pensa nisso com a pipa no ar. O céu é grande demais pra se preocupar com o asfalto e os carros que passam em alta velocidade. O céu é grande demais para se preocupar com a lei dos homens que proibi pular muros e invadir propriedades privadas. A vida já tem muitos riscos, mais um não vai mudar nada.
Acontece que eu nunca fui de pipa e provavelmente me cortaria sozinho ao enrolar aquela linha que me provocou. Da mesma forma que me corto sozinho com esse texto.
Até logo !